quarta-feira, 28 de junho de 2017

Ver cada vez menos a cada dia… Viver cada vez mais a cada dia…




Um dos sentimentos que mais acompanha quem tem baixa visão é esta constante expectativa de estar à beira de um grande precipício que é a cegueira.

Quando me diagnosticam a minha doença visual, só me deram uma certeza: um dia poderei ficar cega.

Na altura, não tinha a mínima ideia de como se processaria esta tal cegueira. A visão límpida que tinha na altura não agoirava qualquer futuro menos promissor …

Sim, conheci casos na minha família de cegueiras que se apresentaram galopantes.

Alguns médicos até me diziam que eu iria ter visão até os 100 anos.

Estava a ser monitorada anualmente, e os exames demonstravam que a minha retinose era atípica, ou seja, que dificilmente ela se desenvolveria e eu ficaria cega.

Então, em meados de 2011, foi-me diagnosticado um cancro na tiróide.

Passado um ano, submeti-me a um tratamento por iodo radiotivo.

Ainda, durante o internamento do iodo radiotivo, senti a visão dupla.

Coincidência ou não, lembro-me que foi a partir dessa altura que comecei a sentir dificuldades com a luz.


No trabalho, cheguei a zangar-me com os meus colegas por eles quererem as janelas abertas nos dias de sol.

Comecei a ficar intolerante à luz.

Comecei a ver flaches de luz na minha vista cada vez mais fortes.

Sentia-me cada vez mais impaciente diante das luzes, barulhos e multidões.

No início, o diagnóstico de que a minha Retinose Pigmentar tinha despertado não foi fácil de admitir ao meu médico oftalmologista.

Por vezes, nem sempre é fácil admitirmos que a ciência desconhece ainda muito das patologias que atingem o ser humano.

Uma destas doenças tem o nome de Retinose Pigmentar.

Esta doença manifesta-se de muitas maneiras e parece-me que ela se especializa de pessoa a pessoa.

O que eu vivi e senti pode não ser da mesma maneira que outro possa viver e sentir no eclodir da Retinose Pigmentar.

Uma coisa é certa, o melhor é aproveitar a visão, dia após dia.

Pois a incerteza faz parte da vida humana.

E não é porque tenho Retinose Pigmentar que a incerteza será maior.

Talvez, o que a Retinose Pigmentar traz é mais obstáculos dia após dia.


Ver cada vez menos a cada dia significa que tenho de viver cada vez mais a cada dia…


(Ouça abaixo o texto acima narrado pela autora Rosária Grácio)

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Por quê a Bengala é na cor Verde?



Por quê a Bengala é na cor Verde?

Uma das questões que se coloca é o facto da bengala ser verde.

Para saber um pouco do por quê da bengala ser verde, nada melhor que tentar descobrir como e quando foi criada a bengala verde para pessoas com baixa visão.

Penso que conhecer como tudo começou incentivou-me ainda mais a utilizar a bengala verde.

Aliás, desde a sua origem, esta bengala nasceu desta vontade de ajudar as pessoas com baixa visão a não serem confundidas com as pessoas completamente cegas.


Vamos até ao ano de 1996. A diretora do Centro Mayo de Baja Visión, localizado em Buenos Aires, deparava-se com a rejeição que as pessoas com baixa visão tinham no uso da bengala branca.


Realmente, eu mesma tive grande dificuldade em usar a bengala branca. Estava, então no centro de reabilitação de Areosa a aprender as técnicas de mobilidade com o uso da bengala. Ainda tentei usar a bengala branca, porém eram mais vezes que a deixava em casa, preferindo usar outros auxílios como o guarda-chuva ou o carrinho de compras …

Esta questão de usarmos uma bengala que nos identifica como cegos sempre me foi difícil de engolir. Acho que uma pessoa de baixa visão ao usar uma bengala branca transmite uma informação errada acerca do seu problema visual, fazendo com que as pessoas acabem por ficar meio baralhadas com esta questão de vermos e não vermos.

Quando desconhecia esta questão de baixa visão, ao ver uma pessoa a usar uma bengala branca, identificava-o como cega e ponto final. Se a visse a fazer certas coisas como ler um livro ou marcar os números no seu telemóvel iria desconfiar da sua cegueira ser verdadeira…

Esta questão também incomodava os alunos da professora de educação especial Perla Mayo, que atuava na Argentina em 1996.


E assim ela criou a bengala verde para que os seus alunos com baixa visão superassem a sua dificuldade em usar uma bengala que os confundiam com os cegos totais.

E porquê a cor escolhida foi verde?

Esta parte da história é a que mais me surpreendeu.


Para além da cor verde estar associada à esperança, a questão de a Bengala ser verde é muito mais significativa.

A bengala é verde, porque significa “ver-de outra maneira” ou  “ver-de novo”.

A bengala verde permite aos de baixa visão que possam “ver de outra maneira” ou simplesmente “ver de novo” o que já não conseguem ver pois a bengala vê por eles.

Verde vem de “ver de novo” ou “ver de outra maneira”.

Com a bengala verde, finalmente as pessoas de baixa visão tinham em suas mãos uma maneira de expor ao público o seu real problema visual e assim prosseguir a sua vida diária sem ter que estar a justificar que não é completamente cego.

Esta novidade do uso da bengala verde “teve uma repercussão tão positiva” que volvidos apenas dois anos, em 1998, a professora Mayo apresentou uma pesquisa sobre o uso da bengala verde no Congresso Mundial de Baixa Visão, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

Esta questão da bengala verde na Argentina foi tão bem aceite que no dia 27 de novembro de 2002, foi aprovada “a Lei nº 25.682 que estabelece a bengala verde como instrumento de orientação e mobilidade para as pessoas com baixa visão” com “cobertura obrigatória por parte do Estado e dos planos de saúde”.


Segundo Mayo, mais de dez mil pessoas utilizam a bengala verde na Argentina e aliás, em 26 de setembro assinala-se o “Día del Bastón Verde”, ou seja, o dia da Bengala Verde.

Outros países difundem o uso da bengala verde: Nicarágua, Colômbia, Paraguai, México, Equador, Bolívia, Costa Rica, Venezuela e Uruguai.

Uma dessa ações de divulgação é a campanha desenvolvida pela Unión Nacional de Ciegos del Uruguay  - “Luz verde para la baja visión”. Aliás, este país também já tem legislação específica para salvaguardar a bengala verde:  a Lei nº 18.875, aprovada pelo governo uruguaio em 14 de dezembro de 2011.

Também no Brasil, a 13 de dezembro de 2014, na cidade de São Paulo, pela mesma altura em que eram realizadas as comemorações do Dia Nacional dos Cegos, também foi lançado o Projeto Bengala Verde pelo Grupo Retina. Esta instituição, atualmente, tem promovido a “Campanha Bengala Verde” em todo o território brasileiro.

Toda esta vontade de fazer chegar ao público um novo conceito que não deve ser confundido com a cegueira é uma necessidade para quem tem de usar a bengala ainda com baixa visão.

Eu só consegui sair à rua com a bengala, quando soube da bengala verde que me diferenciava dos demais cegos totais.

E atenção: Isso nada tem a haver com preconceito ou que me sinta mais ou menos que os cegos.

Antes pelo contrário. Penso que ao usar a bengala verde ainda mais estou a aumentar o meu respeito por todos os cegos totais.

Penso que os cegos totais merecem e têm a sua identidade padronizada na bengala branca que os identifica claramente.

Eu, sendo baixa visão ao usar uma bengala de cegos, estarei a passar uma falsa informação do que é a cegueira  e das suas necessidades específicas para os cegos totais que a usam.

Penso que nós, baixa visão, precisamos igualmente de uma identidade própria, que nos caracterize e não nos confunda com a cegueira total para evitar as falsas interpretações que irão advir da nossa forma de ver com a bengala que é completamente diversa da utilizada pelo cego.

Não estou a falar aqui das técnicas de mobilidade. Estas técnicas estão bem padronizadas, e aliás, foram-me ensinadas técnicas específicas para o uso da bengala ainda com baixa visão.

O que me refiro aqui é que a bengala verde, antes de mais, é uma rápida forma de expor a minha real deficiência visual, desligando-a da deficiência que está padronizada na bengala branca.

A baixa visão precisa ser identificada pelo público em geral de uma forma rápida e simples. E esta forma rápida e simples é uma simples bengala verde.

A bengala verde proporciona esta forma rápida do público ver-nos e assim voltarmos a existir no que realmente somos: Baixa visão!




Bibliografia:

A história da origem da bengala verde foi consultada no texto de Manoel Negraes - Texto originalmente publicado em Blogs Vias Abertas - Bem Paraná e consultado no seguinte link:

As imagens da professora Perla Mayo foram retiradas dos seguintes vídeos disponíveis no yotube que aconselho a ver. A maioria dos vídeos estão em espanhol mas penso que é possível compreeender.

Trailer Perla Mayo creadora del bastón verde - Baja Vision

ENTREGA DE BASTONES VERDES

domingo, 4 de junho de 2017

Ver ou não ver, eis a questão!

"Ver" - Pintura sobre azulejo - Obra original de Rosária Vilela


Ver ou não ver, eis a questão!

Quem sofre de baixa visão depara-se com esta pergunta existencial: “Ver ou não ver, eis a questão!”

Esta pergunta acompanha-me desde que aceitei que tenho “baixa visão”.

É preciso aceitar-se que se tem esta deficiência visual grave.

Enquanto não aceitarmos que temos esta deficiência visual, ficamos sujeitos às suas vicissitudes. Quando comecei a aceitar esta fragilidade, é que arranjei coragem para vencer as minhas limitações, e adaptar-me a elas, para assim prosseguir a minha vida diária.

E quão difícil é aceitarmos que já não temos a mesma visão como antes!

Quando se vai perdendo a visão, pelo menos no meu caso, o campo visual vai-se apagando aqui e ali…

O problema é que não sabemos quando vai ser “aqui” ou quando vai ser “ali”.

"Interrogações Transmontanas" - Pastel sobre papel - Obra original de Rosária Vilela

Quando a minha deficiência visual agravou, a minha perceção visual foi sendo cada vez mais limitada. Porém, definir isso concretamente tornou-se o meu maior problema.

No início, não percebia muito bem porquê, por vezes, via umas coisas e depois já não as via.

Às vezes via, e julgava que via! Aliás, até afirmava que isso ou aquilo estava ali! E depois, ao voltar a olhar, as coisas como que desapareciam ou mudavam de lugar.

No entanto, o que realmente tinha mudado, era a minha perceção visual.

Posso dizer que a visão era o sentido que mais utilizava em minha vida.

Ainda mais que sou pintora artística.

Claro que para além das artes tinha e tenho outras atividades.

Porém, as artes visuais sempre captaram a minha atenção desde a minha infância.

Quando se vê o mundo como artista de artes plásticas, tudo é percebido como cores, linhas e sombras. Os mínimos detalhes são essenciais.

Portanto, à medida que fui perdendo esta perceção pura do que via, tive de saltar do patamar de conforto onde estava.

Quando voltei a dedicar-me às artes, já com baixa visão, tive de reaprender a pintar e a desenhar…

Posso dizer, que agora, pinto e desenho mais com as mãos do que com a visão. Pode ser absurdo dizer isso, mas as mãos também veem.

Penso que não é pelo facto de ter deficiência visual que tenha de abdicar da minha arte.

Até que a minha vista se acabe, eu vou continuar a pintar!

Eu a pintar.

Desde que comecei a fazer este percurso de cegueira progressiva, conheci pessoas corajosas, que ultrapassaram muito, para realizarem os seus sonhos profissionais.

Pintar e desenhar com baixa visão é um desafio.

A vida é um desafio a cada instante!

Para quem não sofre de deficiência visual, ver pessoas com este problema físico a fazerem coisas que exigem muito da visão, parece impossível.

Eu também julgava muitas coisas impossíveis quando comecei a ter baixa visão.

Até que um dia, aceitei a minha bengala verde e pus-me a voltar a fazer algumas das coisas que antes fazia. Claro que nem todas as coisas podemos fazer da mesma maneira que antes. A questão aqui é encontrarmos uma nova forma de fazer as coisas que antes fazíamos.

Isto é trabalhoso, mas é compensador! Temos de decidir que a visão nos falha e que é preciso arranjarmos novas formas de fazer as coisas, mesmo que seja mais devagar.

Quando estou a pintar, agora com baixa visão, já não penso muito no que as cores e as formas me indicam. Sei que à medida que vou perdendo a visão, terei cada vez mais falhas no que penso estar a ver... 

Cada vez mais, preciso sentir as cores e as linhas com as suas sombras e tons, tocando-lhes com o pincel, enquanto eu puder.

E isso também se aplica a outras atividades… Por exemplo, lavar a louça, arrumar a roupa ou passar a ferro. Não posso guiar-me pela visão. Tenho de tocar, sentir as coisas e ver se o prato está realmente bem lavado, ou se se a roupa está bem dobrada ou se está bem passada. Tudo isso tenho de ver com os dedos e não com a visão.

Quando faço compras no supermercado, tenho de ver com as mãos, sentir que não esqueço nenhuma coisa que comprei quando as coloco no meu carrinho de compras.

Andar na rua, com a bengala verde a ver a rua e os seus obstáculos, libertando os meus olhos de tantas preocupações com o meu caminhar em segurança entre as pessoas e os carros em movimento.

Com a minha baixa visão, tenho grande dificuldade com o barulho e o movimento. É complicado andar numa rua movimentada pois já não sou capaz de captar tudo o que se passa à minha volta.

A minha baixa visão não me permite ver tudo como um todo. Mas a minha bengala verde e os meus dedos começaram a ver por mim.

Não é fácil esta decisão!

Todos tem o seu momento.

Por vezes, ficar em casa, é sempre a maneira mais fácil de lidar com a deficiência visual.

Porém, é em casa, na minha zona de conforto, que tento reaprender dia após dia como posso lidar com a minha baixa visão.

Cozinhar, cuidar dos meus gatos, escrever e ler um livro.
Sim, ler um livro, é ainda possível.

Eu e a minha gata Bia

Aprendi que ler um livro com a luz da janela a iluminar as letras, nem se precisa de óculos. Sim, esta técnica, para mim resulta.

Tenho é que colocar os dedos a servir de guia a cada frase lida. Se não fizer isso, já me aconteceu deixar de ler um parágrafo inteiro que julgava não existir…

A Baixa visão engana-nos com facilidade se não estivermos atentos.

No início, muitas coisas passavam despercebidos porque as olhava e pensava já ter visto tudo.

Ver e não ver, eis a questão!

A visão não é a única maneira de ver e quando reparei que tinha outras possibilidades, voltei-me a inscrever-me na escola das habilidades físicas do meu corpo e fiquei admirada.

Quando aceitei que não poderia continuar a depender da visão, aos poucos fui-me apercebendo que poderia ver, de uma maneira diferente e só então, comecei a adaptar-me a esta nova situação, pois este desafio está apenas a começar!

É como se estivesse num jogo de futebol. Tenho de conhecer muito bem o meu adversário, a “baixa visão, para que possa vencer a cada jogada do dia a dia.

Ainda estou a aprender a lidar com a "baixa visão", aliás, não sei nada deste futebol complexo que é a deficiência visual. A minha única tática possível é perceber muito bem o tipo de baixa visão que tenho pois só assim, estarei mais preparada para vence-la no meu quotidiano.


Foto de um jogo de futebol


Obs.:As imagens estão identificadas com legendas.